Herança
e desafios
*Este texto foi produzido para o jornal SAVANA de 7.05.2020
“Cristianismo e religião - Fé e revolução” foi o
título da carta-pastoral do Bispo Manuel Vieira Pinto no Natal de 1978. Num
tempo de ateísmo militante, tratou-se de uma proposta e de um desafio a um
diálogo sereno aos ideólogos marxistas da Frelimo como Jorge Rebelo, Marcelino
dos Santos, Sérgio Vieira, e outros, a uma mais realista definição das atitudes
políticas tendo em conta a índole socio-religiosa do Povo moçambicano.
Afinal, a religião não tem de ser, fatalmente, ópio do povo, mas também pode ser fonte de rebeldia revolucionária, de inspiração transformadora da sociedade.
Afinal, a religião não tem de ser, fatalmente, ópio do povo, mas também pode ser fonte de rebeldia revolucionária, de inspiração transformadora da sociedade.
Manuel,
também nisto se revelou o pastor intrépido, seguro de que as vicissitudes por
que a Igreja católica passava, às mãos da Frelimo, eram o dedo de Deus a
fazê-la renascer no coração do Povo como genuinamente moçambicana. Nada de
anticomunismo primário ou de tentação de resistência à proposta de reconstrução
nacional. Manuel Vieira Pinto foi, também, tranquilamente, catequista dos políticos.
Por isso pode responder à conhecida interpelação de Samora: “Deus não precisa que
o defendam. O Homem sim!”
Nestes dias da sua “Páscoa”, proliferam, os elogios ao
querido Arcebispo Visionário, "Bispo do Povo", como o classificou o meu amigo Charles Inácio Baptista no jornal Canal de Moçambique. E todos serão poucos, para com um
discípulo de Jesus que foi, crescentemente, na sua peregrinação terrestre, um
incontornável defensor da dignidade de todo o humano. E foi-o,
especialmente das pessoas mais pobres, mais abandonadas nas margens do mundo,
ou perseguidas pela sua entrega ao serviço das causas da verdade e da paz; e
mais ainda, e, tantas vezes, sacrificadas e massacradas na estupidez de todas
as guerras, enfatizando, aqui, sua querida terra moçambicana, a tristemente
inesquecível guerra civil – a tal dos 16 anos - de que ainda ninguém se
penitenciou. Nem Frelimo nem Renamo. E o resultado dessa falta de penitência,
está bem patente, hoje, a nossos olhos.
De
mim,
sobrevivente privilegiado de todos os colaboradores mais próximos do
amado
Arcebispo, já não se devem esperar mais encómios. Seria fastidioso
repetir aqui
o que tantos outros já disseram, e muito exaustivamente, o meu irmão,
militante católico, Benedito Marime, na mesma edição referida do SAVANA . Fá-lo-ia de bom grado, e com toda a
facilidade. Mas já seria “chover no molhado”.
Mas porque o Fernando Lima, nosso companheiro de
caminhadas em tantas trincheiras de liberdade, comuns a mim e a Vieira Pinto,
me pediu um testemunho, ainda que profundamente consternado, como tantos dos
que, com imensa cordialidade, se me dirigiram nesta hora, até expressando
condolências, como se eu fosse o seu filho dilecto pela carne e pelo sangue,
aceitei marcar a minha presença neste registo. De facto, como ficou claro no
livro que produzi sobre ele – MANUEL VIEIRA PINTO – O VISIONÁRIO DE NAMPULA – a
nossa sintonia espiritual, pastoral e política, foi total.
A
pandemia do COVID 19 obrigou a que o seu funeral não tivesse a solenidade que
todos desejávamos e tivesse sido feito na exiguidade e nos constrangimentos de
todos conhecidos. Um dia, reconvocar-nos-emos para fazermos a celebração da
glorificação pascal da vida tão plena de tão grande pastor.
Já nos tínhamos habituado ao seu silêncio, à sua
ausência de cena, à sua voz emudecida pela doença.
Tanto assim que, um relevante moçambicano dos governos de Samora, Teodato Hunguana, me diz:
“Na verdade não fazia ideia de que o Dom Manuel Vieira Pinto estivesse ainda entre nós! Tanto silêncio sobre um nome tão notável, a quem tanto devemos, levou-me certamente a essa presunção. Estou em crer que há muito da vida dele, da relação dele com os libertadores, que não conheço, ou não conhecemos, e que deve ser trazido ao nosso conhecimento. Por isso me interrogo se o padre Zé Luzia, sendo um privilegiado e profundo conhecedor da vida de D. Manuel Vieira Pinto, terá de facto dado já por terminada essa tarefa com os livros que publicou, mas que não cobrem essa fase antes do seu regresso a Portugal...?!...sobretudo sobre as circunstâncias desse regresso!
Tanto assim que, um relevante moçambicano dos governos de Samora, Teodato Hunguana, me diz:
“Na verdade não fazia ideia de que o Dom Manuel Vieira Pinto estivesse ainda entre nós! Tanto silêncio sobre um nome tão notável, a quem tanto devemos, levou-me certamente a essa presunção. Estou em crer que há muito da vida dele, da relação dele com os libertadores, que não conheço, ou não conhecemos, e que deve ser trazido ao nosso conhecimento. Por isso me interrogo se o padre Zé Luzia, sendo um privilegiado e profundo conhecedor da vida de D. Manuel Vieira Pinto, terá de facto dado já por terminada essa tarefa com os livros que publicou, mas que não cobrem essa fase antes do seu regresso a Portugal...?!...sobretudo sobre as circunstâncias desse regresso!
Louvado seja Deus pela herança desafiante que nos
deixa! Na verdade, conheci-o melhor
lendo os seus livros... Na verdade, os seus livros são garante da preservação
do legado de D. Manuel Vieira Pinto! E hoje estamos tão precisados desse
legado! O caminho da Igreja, isto é, de Cristo em Moçambique, passa pela vida
dele e pelo legado. Não se pode compreender bem onde estamos hoje sem essa
referência fundamental. D. Manuel Vieira Pinto “combateu o bom combate,
terminou a corrida, permaneceu fiel”...e está recebendo a “merecida coroa ...
que o Senhor lhe entrega”.
Partilhas como esta, do Teodato, tão imediata e espontânea no whatsapp, calam muito fundo no
meu coração. Aprendi, agora, que a palavra consternação não é
vocábulo de simples conveniência protocolar de necrologia. Exprime, nestes
dias, a mais profunda intimidade de todos nós. Afinal, mesmo roubado pela
doença, há anos, ao nosso convívio, todos continuávamos a senti-lo vivo,
palpitante, como se fosse nosso eterno companheiro nesta peregrinação
terrestre.
A “Irmã Morte” veio despertar-nos, a todos, da
letargia em que vivíamos e trouxe para a ribalta mediática, sociológica,
política e eclesial, o nosso Pai (como tão carinhosamente, sobretudo os mais humildes
do Povo Moçambicano, me perguntavam por ele).
Todos o sentimos. Assim o exprimiu o Professor Jorge
Ferrão quando há dias escreveu: “Dom Manuel Vieira
Pinto foi alguém que nos habitou às múltiplas despedidas, tantas foram as vezes que partiu e regressou (Cartamoz, 4.5.20).
Porém, em Março de 2001, partiu para nunca mais voltar. E toda agente me pergunta: porquê?
Os registos acerca deste nosso Pai, chegados nestes
dias, são unânimes e convergentes.
Diz o Professor Leonel Marcelino, o verdadeiro construtor
da nossa Rádio Encontro:
“Nunca me esqueço das reuniões e dos encontros em que
participámos. Era um espectáculo de humildade, de saber, de recato, de saber
estar e cativar. Não precisava de falar para se fazer entender. Um gesto, um
sorriso, bastavam para nos dar paz e entendermos o que tinha na ideia para bem
do Povo em geral, dos colaboradores, de todos que o acompanhavam mais de perto,
e não só. Há-de ser muito difícil encontrar alguém capaz de lhe chegar aos
calcanhares na sua acção e missão. Descanse em PAZ!”
Eu,
muito jovem, cheguei em Nampula, ao convívio do Bispo Manuel, em 1968.
Eu, aprendiz
de missionário e de padre, logo me dei conta do pastor sempre aproximado de toda
a gente como esta fotografia ilustra. A "Diocese", designação, então da casa do Bispo, deixava de ser o palácio distante onde os pobres nunca tinham acedido. Como, 45 anos depois, viria a dizer o Papa Francisco, “um Pastor com cheiro a
ovelhas”. De facto, o Bispo Manuel foi, como agora Francisco, sempre surpreendente nas palavras e nos gestos.
Setembro 1968 - Primeiros encontros do jovem Bispo com os seus filhos da terra |
Atrevido, avantajou sempre as asas dos nossos voos de
jovens insatisfeitos e rebeldes, arroteando caminhos por abrir. Ousado! Tanto na
pastoral em sentido mais estrito, como nas suas incidências políticas, como o
testemunham as homilias “Repensar a guerra” (1974), interpelando o
governo e a sociedade coloniais, que o levou à expulsão; e “A Coragem da Paz”
(1984), desafiando, em nome do Povo, o Presidente Samora a entabular o diálogo
com a Renamo.
Como
Igreja, conheci, na prática, um Bispo
não-clerical. Com ele aprendi a ser animador de uma genuína Igreja de
Todos, crescentemente livre do vício clerical, pela participação de
todos os
batizados, do pé descalço ao engravatado, tanto ao gosto, hoje, do Papa
Francisco.
Nessa linha, aprendi a ser padre mais da “Igreja das Palhotas”, das pequenas e humildes comunidades emergentes, do que da grandiosidade das empoladas catedrais por impressionantes que elas possam ser. E são-no! Vieira Pinto deleitava-se nas celebrações do "mato", para as quais levava os mesmos solenes paramentos que utilizava na catedral!
Visita Pastoral no Mirrote - Animador Paroquial José Monteiro |
Nessa linha, aprendi a ser padre mais da “Igreja das Palhotas”, das pequenas e humildes comunidades emergentes, do que da grandiosidade das empoladas catedrais por impressionantes que elas possam ser. E são-no! Vieira Pinto deleitava-se nas celebrações do "mato", para as quais levava os mesmos solenes paramentos que utilizava na catedral!
Alexandre Rancho na celebração do Envio |
Tenho a certeza de que se o Papa João Paulo II lho tivesse permitido, alguns homens casados, como, por exemplo, o Animador Paroquial Alexandre Rancho, de Murrupula, teriam sido ordenados presbíteros.
Com efeito, foi também o atrevimento e a aposta do Bispo Manuel que fez destes homens e mulheres, simples e de pé no chão, protagonistas do renascimento da Igreja católica em Moçambique, e mais particularmente, na nossa Diocese, no contexto do ateísmo a seguir à independência.
Esta atitude de Manuel Vieira Pinto era mestra, também, para
toda a Igreja de Moçambique como, em mensagem agora recebida do Bispo Élio
Greselin, emérito de Lichinga, o exprime:
“Li com verdadeiro gosto a tua intervenção sobre o bispo de Nampula D. Manuel Vieira Pinto. Eu conhecia-o muito bem e tinha ficado em sua casa durante uns tempos em Nampula. Lembro, muito bem, a sua simplicidade e a sua fidelidade ao povo durante os tempos da guerra colonial . Ele era para nós um verdadeiro bispo, guia do povo e dos bispos naquele tempo de grande confusão”.
É urgente que esta figura emblemática da nossa
história moçambicana, sirva de fonte de inspiração. Bem no-lo apontava já o
actual e também Bispo-Profeta de Cabo Delgado, Luiz Lisboa, quando, em 2016, prefaciando o
livro O VISIONÁRIO DE NAMPULA, não suspeitando da desgraça que haveria de se
abater sobre ele e o seu povo, escrevia:
“...convido todos os bispos de Moçambique e de outras terras para que a vida e o testemunho de D. Manuel seja, para cada um de nós, fonte de inspiração e encorajamento; incentivo cada leitor/a para que saboreie as poucas páginas deste livro que, contendo apenas uma parte da rica trajectória de um valente e destemido cristão, não são mais do que um aperitivo para despertar o apetite para “comer” toda a sua herança teológica, pastoral e espiritual”.
“...convido todos os bispos de Moçambique e de outras terras para que a vida e o testemunho de D. Manuel seja, para cada um de nós, fonte de inspiração e encorajamento; incentivo cada leitor/a para que saboreie as poucas páginas deste livro que, contendo apenas uma parte da rica trajectória de um valente e destemido cristão, não são mais do que um aperitivo para despertar o apetite para “comer” toda a sua herança teológica, pastoral e espiritual”.
Inspiração para que o mundo académico, a começar pelos
nossos seminários e as instituições universitárias, sobretudo as das áreas da
sociologia, da psicologia, da política e das humanidades em geral, produzam
trabalhos de pensamento que rentabilizem a preciosa herança que ele nos deixou.
Os dias do Moçambique de hoje no-lo exigem. A guerra
larvar no centro do país, e o terrorismo criminoso de Cabo Delgado, desafiam-nos
como cidadãos e como cristãos.
A democracia doentia sem eleições justas, infernizam a vida dos moçambicanos que clamam por honestidade.
A democracia doentia sem eleições justas, infernizam a vida dos moçambicanos que clamam por honestidade.
Mas se todos estamos de acordo sobre o gigantismo
desta incontornável figura de comprovada e pragmática moçambicanidade, como
podemos entender:
1º
Que ele nunca mais tenha voltado à sua querida
terra de adopção como tanto desejava? Que não esteja sepultado na campa
rasa à
entrada da sua catedral, como tão explicitamente manifestou numa homilia
na
mesma catedral e que, lamentavelmente, logo, também no jornal SAVANA
daqueles dias, uns fedelhos "ultra-nacionalistas" apareceram a verberar?
Quem foram os ingratos que não lhe abriram o caminho regresso?
2º
A ingratidão de um governo que não o enalteceu nem lhe concedeu,
atempadamente, a consolação de o brindar com a nacionalidade, pedido que
ele nunca fez por
uma questão de evitar equívocos e mal-entendidos, mas cujo desejo
manifestou na
sessão de despedida da diocese em 4 de Março de 2001? Será que Mário
Raffaelli,
o respeitado facilitador do Acordo Geral de Paz (Roma, 4 de Outubro de
1992) se
pode comparar, no serviço a Moçambique, a Manuel Vieira Pinto? Ou mesmo
os ínclitos Presidentes Julius
Nyerere e Keneth Khaunda?
Talvez o leitor possa ter interesse em escutar a sua própria voz sobre estas questões na gravação feita e guardada pelo Padre Manuel Vilas Boas (2002) em https://www.tsf.pt.
Não podia não voltar a falar destas temática por achar que a ingratidão é um pecado de lesa-pátria que contamina as sociedades e os estados como entidades, que devem ser, de bem e de serviço. Já Jesus de Nazaré questionava: “Não foram dez os curados? Então só voltou este estrangeiro para dar glória Deus? Onde estão os outros nove?"
Gratidão, é o que faz falta, cantaria, quase de certeza, o saudoso trovador Zeca Afonso!
Não podia não voltar a falar destas temática por achar que a ingratidão é um pecado de lesa-pátria que contamina as sociedades e os estados como entidades, que devem ser, de bem e de serviço. Já Jesus de Nazaré questionava: “Não foram dez os curados? Então só voltou este estrangeiro para dar glória Deus? Onde estão os outros nove?"
Gratidão, é o que faz falta, cantaria, quase de certeza, o saudoso trovador Zeca Afonso!