sexta-feira, 3 de março de 2023

Nelson Saúte, um escritor moçambicano, expressa neste poema a crise humanitária, e o esquecimento a que a região está votada. Este poema, com a força das palavras, apela a pensar no Sul global com os pés no chão, numa luta que é comum, pelo direito à vida. E aqui a solidariedade é fundamental pois a luta contra qualquer fundamentalismo deve ser travada apoiada no internacionalismo. Os mortos de Muidumbe Quem de nós não morre quando todos morremos em Muidumbe? Quem sobrevive incólume diante dos impiedosos algozes daqueles nossos infaustos concidadãos de Muidumbe? O sacrifício dos que foram assassinados em Muidumbe não é bastante para sangrar os jornais além das efémeras notícias que não abalam a nossa moçambicaníssima complacência? Quem fica de joelhos pelos mortos de Muidumbe? A galhardia daqueles que foram metralhados sem comiseração em Muidumbe não sufraga a honra das nossas ruas? Por que nada exigimos? Por que razão nenhum clamor fazemos? Os nossos punhos não se compadecem por todos os que morreram por nós em Muidumbe? Os mortos de Muidumbe não concitam a nossa dor? Os mortos de Muidumbe desmerecem a nossa compaixão? Os mortos de Muidumbe não tributam o nosso sofrimento? Somos misericordiosos com os outros mortos e postergarmos os nossos mortos de Muidumbe. O sangue vertido em Muidumbe não é nosso sangue? Onde estão as vigílias as velas as praças exaltadas? As missas liturgias eucaristias. Nenhuma cidade se levanta perante os mortos de Muidumbe. Porquê? Os mortos de Muidumbe resistem sem rosto. Os mortos de Muidumbe são apenas um número para a estatística para o cadastro para o catálogo da nossa humilhação colectiva para a recensão da desonra para o arquivo e para o esquecimento. Os mortos de Muidumbe não cantam. Os mortos de Muidumbe não falam. Os mortos de Muidumbe não reclamam. Os mortos de Muidumbe não sonham. Os mortos de Muidumbe não gabam a quimera dos seus epitáfios. Nem esperam o requiem dos outros defuntos. Os seus gritos não conclamam os deuses porque os deuses estão ensimesmados com outros mortos. Os mortos de Muidumbe foram enterrados mas permanecem insepultos. Nenhuma necrologia inscreve os seus nomes. Os jornais não têm letras de sangue para os que morreram em Muidumbe. Não há obituários para os mortos de Muidumbe. Os jornais são omissos quanto ao massacre de Muidumbe o genocídio de Muidumbe os fuzilamentos de Muidumbe o extermínio de Muidumbe a carnificina de Muidumbe. Os mortos de Muidumbe perseveram no anonimato como os decapitados de Mocímboa da Praia Quissanga Mueda Palma Metuge Macomia a Norte onde se aniquila o futuro do nosso passado. Os mortos de Muidumbe não desconsolam o mundo o mundo está assoberbado com outros mortos o mundo urge para os outros mortos o mundo não tem empatia com os mortos de Muidumbe. Há um pérfido alheamento pelos mortos de Muidumbe. Os mortos de Muidumbe não fazem parangonas não abrem telejornais. Quem morremos com os mortos de Muidumbe? Será que não morremos todos com os mortos de Muidumbe? Ninguém de nós se condói pelos mortos de Muidumbe? Que país é este que não se enternece com os mortos de Muidumbe? Os nossos pêsames a nossa consternação a nossa comiseração a nossa humanidade não são dignos dos mortos de Muidumbe? Que luto é este que escolhe não velar os mortos de Muidumbe? Que mortos sufragamos nós para carpir as nossas lágrimas? Que angústia é essa tão insolente quanto aos mortos de Muidumbe? Que silêncio é este perante o silêncio dos que foram silenciados em Muidumbe? Quem de nós não morre quando todos morremos em Muidumbe? Nelson Saúte Junho de 2020